A construção da Soberania Alimentar e o retorno das políticas públicas agrárias

Nos quatro últimos anos, chegamos a 33 milhões de brasileiros e brasileiras passando fome. Esses números revelam uma situação mais grave do que a encontrada pelo presidente Lula em 2001. E apontam para a urgência de estruturação de políticas públicas que tenham na soberania alimentar seu centro. Um país que não é capaz de produzir alimentos saudáveis e acessíveis à sua população não consegue avançar para qualquer projeto de nação digna. A principal bandeira de ação de Lula sempre foi o combate à fome. Já em sua posse, o governo lançou a retomada do Programa Bolsa Família e o retorno do Ministério do Desenvolvimento Social. Em fevereiro, Lula reinaugurou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), fechado em 2019 por Bolsonaro. O Conselho é um importante espaço de participação popular na construção do direito à alimentação adequada. Dentre suas atividades, destacam-se o controle de estoques de alimentos; programas de cisternas para agricultura familiar, com articulação entre campo e cidade; rotulagem de alimentos; monitoramento de ações e políticas públicas. Vale recordar que o direito à alimentação faz parte dos direitos sociais previstos no art. 6 da Constituição. Embora sejam fundamentais as medidas emergenciais do combate à fome e o estabelecimento de programas de renda básica, enquanto a soberania alimentar não for tratada como pauta estruturante da política agrária brasileira, seguiremos recaindo em ciclos de retorno ao mapa da fome. A soberania alimentar envolve um olhar mais sistêmico ao modelo de produção no campo, que prioriza a produção da agricultura familiar de base ecológica. No Brasil, os alimentos que são disponibilizados em nossa mesa provêm da agricultura familiar que, no entanto, recebe menos incentivos e ocupa menores proporções de terras. As monoculturas do agronegócio não produzem a diversidade de alimentos nutricionais de que precisamos. Nesse caminho, o governo Lula dá passos lentos. Sufocado pelo orçamento apertado, tenta encontrar caminhos para a retomada de políticas públicas em apoio à produção camponesa. Durante o Governo Bolsonaro, a reforma agrária foi paralisada, e sofreu duros golpes. Um deles foi a edição da normativa que autoriza a titulação individual dos lotes aos assentados da reforma agrária. Antes, o assentado possuía o direito de uso, sendo as terras de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que implicava que o Estado mantinha sua responsabilidade com a função social da terra, tendo o dever de assegurar políticas públicas. Agora, estimula-se a mercantilização das terras, tornando possível que áreas destinadas à Reforma Agrária sejam incorporadas ao mercado e se destinem à especulação financeira ou ao agronegócio. Outro efeito é a explosão de acampados que esperam acesso à terra. Segundo o Movimento Sem Terra (MST), são por volta de 100 mil pessoas que aguardam, em mais de 360 projetos de assentamentos congelados. Muito embora o orçamento de R$ 2,4 milhões seja irrisório para a compra de terras, outros mecanismos precisam ser explorados como a regularização e destinação das terras públicas, o cumprimento real da função social da propriedade e o questionamento da produtividade da monocultura, seja na geração de trabalho como de alimento. Todo esse desafio recairá no presidente do INCRA, nomeado apenas em março. No último mês, o governo anunciou a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O PAA realiza a compra direta de alimentos da agricultura familiar, e em sua nova modalidade, incluirá comunidades indígenas e quilombolas. No anúncio realizado no dia 23 de março, o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Edegar Preto, comunicou: “Vamos comprar, a preço de mercado, os alimentos dos agricultores familiares de todo o Brasil e ajudar a colocá-los na mesa dos brasileiros, garantindo renda a quem produz e uma alimentação de qualidade aos consumidores”. Outra prioridade no programa é a compra de alimentos das mulheres: está prevista a cota de que ao menos 50% das compras sejam das produtoras. Também foi reinstalado o Comitê de Assessoramento do programa, assegurando a participação popular na gestão da política. Outro passo importante foi o retorno da titulação dos territórios quilombolas. Em março, o governo assinou a titulação de três territórios: Brejo dos Crioulos (MG), com 630 famílias; Serra da Guia (SE), com 198 famílias; e Lagoa dos Campinhos (SE), com 108 famílias. Já tendo titulado tanto quanto o Governo Bolsonaro em quatro anos. A medida faz parte do Programa Aquilombar Brasil, lançado pelo Ministério da Igualdade Racial. O governo ainda comunicou a destinação de 513 milhões de reais para demarcação de territórios indígenas. Barra do Turvo/SP: intercâmbio de comunidades quilombolas e mulheres da agroecologia / Vanessa Silva/Amigas da Terra Brasil O acesso à terra e ao território são condições primeiras para que indígenas, quilombolas, agricultura familiar e camponesa possam produzir alimentos saudáveis para o Brasil, garantindo também preservação e justiça ambiental. Mas as necessidades não se limitam a isso, é preciso fortalecer as redes de troca e comercialização de sementes, reconhecer os saberes e as práticas diversas dos povos do Brasil, incluir grupos informais de produção e cultura agroecológica ancestral que, ainda mais durante a pandemia, realizaram e encurtaram circuitos solidários entre campo e cidade no combate à fome e à violência. Com soluções que também respondem à crise climática, mas principalmente à garantia de renda e autonomia para as mulheres, redes como a Rede de Agroecologia de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), em São Paulo, em articulação com movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e com grupos de consumos na cidade de São Paulo, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira realizaram, em março, um intercâmbio com coletivos de mulheres do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, promovendo uma integração por meio do diálogo campo e cidade, construído na prática pela organização. Para Lúcia Ortiz, das Amigas da Terra Brasil, “a potência dos saberes e fazeres das mulheres, solidárias no cuidado umas com as outras e generosas no trabalho em mutirão, fortalecem seus conhecimentos ancestrais e sua luta por direitos, fazendo chegar à cidade não